Servidores públicos, principalmente das forças de segurança, recorrem, de maneira desenfreada, a empréstimos em instituições.

 Muitos comprometem mais de 50% dos salários e isso impacta na saúde mental desses trabalhadores

 

Em meio a um cenário de incertezas econômicas e a perda de compra da população para muitas pessoas, recorrer ao crédito consignado deixou de ser escolha e se tornou quase que uma obrigatoriedade para pagar as contas e fechar o mês.

A combinação entre a estabilidade empregatícia do servidor e a garantia de recebimento por parte da instituição financeira faz com que circulem, anualmente, mais de R$ 4 bilhões nesse tipo de empréstimo, que pode ser uma armadilha para os servidores públicos — principalmente agentes das forças de segurança.

 

Com salários defasados e despesas elevadas, policiais militares, civis e bombeiros do Distrito Federal se veem reféns dos consignados.

Para além da dívida, enfrentam as consequências sociais, psicológicas e profissionais.  

O empréstimo consignado começou a ser oferecido em 2004, com base na Lei nº 10.820/2003, e logo se expandiu entre servidores públicos ativos, aposentados, pensionistas e também trabalhadores do setor privado.

 A facilidade na liberação de recursos tanto em agências quanto aplicativos financeiros deu agilidade à transação. Em um clique, o servidor envia seus dados, solicita o empréstimo e, em alguns casos, recebe o dinheiro na conta em até 24 horas.

 

Mas o que seria um alívio orçamentário pode se transformar num pesadelo. O superendividamento entre agentes de segurança vai além de um rombo nas finanças pessoais.

Em muitos casos, transforma-se num grave problema de saúde pública. Por enfrentarem constante pressão no ambiente de trabalho, esses profissionais estão expostos a situações de perigo e carga emocional intensas.

 

 As dívidas recorrentes desses empréstimos agravam ainda mais o estado emocional desses agentes de segurança.

“O endividamento financeiro impacta diretamente a saúde mental e o bem-estar dessa parcela do serviço público. Muitos se veem em uma situação de vulnerabilidade emocional, agravada pela necessidade de trabalhar sob condições de alto estresse e, em alguns casos, com o risco de vida. Em um contexto em que o trabalho exige controle emocional, discernimento e prontidão para lidar com crises, o acúmulo de dívidas financeiras representa uma carga que agrava transtornos como ansiedade e depressão, podendo levar a situações de exaustão psicológica e até ao extremo do autoextermínio”, enfatiza a psicóloga Êdela Aparecida Nicoletti.

 

Ao mesmo tempo em que as ofertas dos consignados são atrativas, se tornam perigosas para o orçamento pessoal de longo prazo, destaca o economista e coordenador do curso de economia do Centro Universitário Iesb, Riezo Almeida.

 “Muitos servidores acabam contraindo novas dívidas para pagar dívidas antigas, caindo em um ciclo de endividamento que, sem um planejamento financeiro adequado, pode levar ao superendividamento”, ressalta. 

Almeida considera o superendividamento dos servidores públicos como um fenômeno com repercussões econômicas amplas na capital. Segundo ele, ao comprometer uma parcela substancial dos salários com dívidas, esses trabalhadores reduzem a capacidade de consumo e de investimentos pessoais, afetando também toda a economia. 

 

Dívida bilionária

O Correio analisou as estatísticas do Banco Central (BC) que tratam sobre crédito consignado concedido a servidores públicos e a trabalhadores do setor privado: saldo por modalidade, que representa o total de empréstimos entregues aos servidores, e inclui o que ainda não foi quitado (veja quadro). De acordo com os dados do BC, o saldo total de empréstimos consignados destinados a servidores públicos na categoria saldo por modalidade aumentou em 9% entre 2022 para 2023: passou de R$ 3.689.159 para R$ 4.027.051 bilhões. Entre janeiro e setembro deste ano, nota-se uma tendência: foram R$ 3.197.761 bilhões concedidos aos consignados. 

 

Há uma discrepância expressiva ao se comparar o total de empréstimos da mesma modalidade concedido a trabalhadores do setor privado. Em 2022, esses profissionais receberam um total de R$ 402.657 milhões em empréstimos. Em 2023, R$ 499.893 e, entre janeiro e setembro deste ano, o montante foi de R$ 366.788. 

Aquele discurso de que “passou em concurso, você fecha a porta da pobreza e tem renda fixa” não passa de uma mera ilusão. Jadson Xavier, economista da Paribus e especializado em planejamento financeiro, faz uma comparação: “Diferentemente do trabalhador inserido no regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em que sempre há risco de demissão, o servidor público pode planejar o pagamento desse empréstimo a longo prazo”, explica.

 

Com um salário garantido, os servidores públicos tornam-se alvos frequentes das instituições financeiras, que oferecem taxas de juros tentadoras e modalidades de crédito com condições de pagamento menos restritivas, pois as parcelas são descontadas diretamente da folha de pagamento — a margem do consignado público é determinada em lei. Pela norma, os servidores têm 45% de margem consignável: são 35% para o empréstimo, 5% para o cartão de crédito consignado e 5% para o cartão consignado de benefício.

 Estatísticas revelam que servidores públicos contraem mais empréstimos consignados do que trabalhadores do setor privado

Estatísticas revelam que servidores públicos contraem mais empréstimos consignados do que trabalhadores do setor privado

 

Os economistas alertam, porém, sobre os assédios de instituições financeiras para extrapolar o que a lei determina. O cartão de crédito consignado, por exemplo, pode ser um vilão. Mascarado por taxas de juros relativamente baixas, essa modalidade permite ao cliente realizar saques ou compras, com o valor das parcelas sendo descontado automaticamente do salário. Consequências? Endividamento excessivo em decorrência dos juros rotativos e, em alguns casos, o comprometimento em mais de 50% do salário. “As agências fazem o CDC, que é crédito direto ao consumidor, ou seja, dinheiro na conta. Às vezes, o cliente tem consignado de 45% da renda, mas ele tem vários créditos CDC, que são descontados na conta”, explica o economista Jadson Xavier.

 

Necessidades básicas

Pesquisas específicas sobre o impacto do endividamento e do uso de crédito consignado entre as forças de segurança são escassas. Mas, evidências e relatos sugerem que esses profissionais recorrem a esse tipo de empréstimo para suprir necessidades básicas, mantendo uma imagem de estabilidade.

Um levantamento feito com dados do DataJud, painel de estatísticas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), revela que, em média, 24 processos relacionados a empréstimos consignados são registrados diariamente no Tribunal de Justiça do DF (TJ-DF) em 2024. A situação é alarmante, considerando que a capital ocupa a segunda posição entre as unidades da Federação com mais inadimplentes no país, de acordo com o relatório do Serasa divulgado em setembro.

Os dados não especificam o perfil das pessoas que recorrem à Justiça, mas indicam que as principais queixas sobre empréstimos consignados envolvem fraudes, cobranças abusivas e problemas com a margem consignável, o limite máximo que pode ser descontado de cada salário. De janeiro a 31 de agosto deste ano, o Judiciário do DF recebeu 5.811 processos sobre o tema. No ano passado, foram registrados 8.387 processos relacionados a empréstimos consignados, enquanto em 2022 o número chegou a 7.610.

Para a advogada Larissa Rezende, especialista em direito do consumidor do escritório VLW Advogados, os números refletem uma preocupação crescente. “Esses dados são alarmantes porque indicam um problema sistêmico na concessão desses empréstimos, frequentemente relacionados à falta de clareza nos contratos, ao assédio comercial e até mesmo a fraudes bancárias. O volume diário de casos mostra que milhares de consumidores estão sendo lesados e buscam seus direitos de maneira ativa, o que demanda uma intervenção mais rigorosa dos órgãos reguladores e do Judiciário”, observa.

 

Controle

Investir em educação financeira pode ser uma alternativa eficaz para diminuir ou evitar o endividamento entre os servidores, avaliam os especialistas. Ian Lopes, economista e assessor da Valor Investimentos, considera interessante a ideia de incrementar uma grade curricular de planejamento e educação financeira nos cursos de formação para policiais. “Para ajudar os atuais policiais, programas de renegociação de dívidas podem ser implementados, além de palestras e cursos de inteligência financeira a serem disponibilizadas pelo governo para os atuais servidores.”

O Correio questionou a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) sobre as normas instituídas pelas instituições bancárias para evitar situações de superendividamento, além de medidas de conscientização sobre o uso  do crédito. Em resposta, a instituição afirmou que, desde janeiro de 2020, está em vigor a autorregulação do consignado, iniciativa criada em parceria com a Associação Brasileira de Bancos (ABBC), que visa eliminar do sistema as más práticas relacionadas à oferta e contratação dessa modalidade de crédito. 

“Pela autorregulação, é considerada falta grave qualquer forma de captação ou tratamento inadequado ou ilícito dos dados pessoais dos consumidores sem a autorização, e todos os bancos que participam desse controle assumem o compromisso de adotar as melhores práticas relativas à proteção e ao tratamento de dados pessoais dos clientes”, destaca a Febraban. 

Até setembro de 2024, 1.364 medidas administrativas a correspondentes bancários foram aplicadas, entre 629 advertências, 681 suspensões temporárias e 53 suspensões definitivas, proibindo essas empresas financeiras de conceder crédito em nome dos bancos participantes da autorregulação.

A Federação dos Bancos afirma que tem organizado mutirões nacionais de negociação de dívidas e orientação financeira, com a finalidade de prevenir o superendividamento e contribuir para a recuperação financeira do consumidor junto ao Banco Central e Procons. Nas campanhas, são negociadas dívidas em atraso no cartão de crédito, cheque especial e outras modalidades de crédito que não tenham bens dados em garantia, como veículos, motocicletas e imóveis.(*Fonte:Correio)