Ao entrar em um
estabelecimento, o operador de logística Flávio Caetano Anjos, 25, segura o
celular na mão. “Acho que vendo que estou com um aparelho mais caro, talvez
tirem essa ideia de que vou roubar algo”, afirma o morador do município baiano
de Feira de Santana, a 115 quilômetros de Salvador.
Anjos diz que, quando usava o cabelo no estilo black power, sentia diariamente olhares de medo em sua direção. Agora que mantém um corte de cabelo mais curto, ele sente a predominância da desconfiança nos olhares.
Assim como Anjos, a maioria
dos pretos no Brasil diz já ter sentido olhares de desconfiança em lojas,
restaurantes ou supermercados, segundo pesquisa Datafolha. O número corresponde
a 58%. Entre pardos, o percentual é de 40%. Entre os brancos, esse percentual
cai para 26%.
No total, 39% dos brasileiros
afirmam ter sido vistos com desconfiança nesses ambientes.
A pesquisa foi realizada entre os dias 5 e 7 de novembro de 2024 e tem um nível de confiança de 95%, com margem de erro geral de dois pontos percentuais, para mais ou para menos. Com relação à cor, a margem de erro é de cinco pontos para pretos, de quatro para brancos e de três para pardos. Foram entrevistadas 2.004 pessoas com 16 anos ou mais, em 113 municípios de todas as regiões do país.
Para Matheus Gato de Jesus,
coordenador do Afro-Cebrap e professor de sociologia da Unicamp, a diferença
nas respostas de pretos, pardos e brancos tem origem na experiência racial
desses grupos.
“A percepção racial entre os
negros, sobretudo pessoas pretas, é muito mais aguçada para as experiências.
Penso que mais pessoas pretas estão relatando sentir esses olhares porque elas
têm uma percepção específica do racismo, que difere dos pardos e dos brancos”,
afirma.
Com relação à frequência com que percebem esses olhares, pessoas autodeclaradas pretas também se destacaram. Para 29% delas, essas situações acontecem sempre ou às vezes -outros 29% apontam que os casos ocorrem raramente. Entre os entrevistados pardos, 16% apontaram que sentiram olhares de desconfiança sempre ou às vezes.
O índice cai para 10% entre
autodeclarados brancos.
De acordo com o pesquisador,
o racismo brasileiro impede que negros sejam percebidos como pessoas da classe
média e alta. “Ou seja, elas não são vistas como agentes plenamente
consumidores. E consumir não é simplesmente ter dinheiro para comprar, é ter o
status suficiente para exibir determinadas marcas”, afirmou.
Entre pessoas com renda
familiar de até dois salários mínimos, 42% dizem já ter sentido um olhar de
desconfiança em lojas, restaurantes ou supermercados, ante 38% na faixa de
renda de 2 a 5 salários. O percentual é de 30% entre quem tem renda superior a cinco
salários mínimos. Nesse estrato, as margens de erro variam de 3 a 7 pontos para
mais ou para menos.
O especialista afirma que, a
partir da determinação dos grupos socialmente autorizados a frequentar
determinados ambientes, há um processo de constrangimento dos indivíduos tidos
como externos. “Boa parte dos brancos que se declaram vigiados, em situação
semelhante às dos negros, são pobres”, diz.
O levantamento também
perguntou aos entrevistados se já passaram por situações em que as pessoas na
rua aparentavam estar com medo deles. Entre os pretos, 29% afirmaram que já
tiveram a sensação de causar medo enquanto andavam pela rua. Já entre os pardos
foram 16%, enquanto apenas 9% dos brancos disseram ter tido essa impressão.
Com relação à frequência, 15%
dos pretos dizem passar por isso sempre ou às vezes, frente a 8% dos pardos e
4% dos brancos.
Quando se analisa apenas o
recorte de gênero, mais homens (25%) dizem ter sentido que alguém na rua teve
medo deles do que mulheres (8%).
De acordo com Jesus, isso
acontece porque a representação sobre o corpo negro no espaço público o entende
como alguém que pode violar algo. “O corpo negro masculino é visto como um
corpo perigoso.
O ditado diz que ‘preto parado é suspeito, correndo é bandido’. Existe uma conexão entre juízo de beleza e juízo de valor: esse conjunto de representações negativas também se alimenta esteticamente”, diz.
Segundo o especialista, as
ferramentas usadas para intimidar são a hipervigilância e a truculência, que se
dão por meio do uso excessivo de câmeras, perseguição por seguranças e até
violência.
Perguntados se já foram
seguidos por um segurança em loja ou supermercado, 36% dos entrevistados
autodeclarados pretos disseram que já aconteceu (18% sempre ou às vezes). Entre
os pardos, foram 21% (7% sempre ou às vezes), enquanto entre os brancos esse número
cai para 13% (3% sempre ou às vezes).
De acordo com Sara Eugênnia,
advogada especialista em direitos humanos e membro da Comissão de Direitos
Humanos da OAB-GO (Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de Goiás), casos de
discriminação são enquadrados na Lei do Racismo e podem ser denunciados em
delegacias, no Ministério Público, na Comissão de Direitos Humanos da OAB e na
Defensoria Pública de sua cidade.
Por ser imprescritível, o
crime de racismo pode ser denunciado mesmo anos depois de ter acontecido.
“A grande questão que eu vejo
é a dificuldade de provar que isso aconteceu. Então, se estiver sendo seguida
por um segurança, por exemplo, tente obter provas antes de tomar alguma atitude
de enfrentamento. Vale gravar com o celular, conversar com pessoas próximas que
podem ser testemunhas, anotar o horário. Tudo isso contribui para que o
processo avance”, afirma a advogada.(*Fonte:JBr)